ouvi nessas esquinas...

ouvi nessas esquinas...

Simone




Cheguei às 3 da manhã.
Levei as chaves à porta e demorei a encontrar a ranhura, estava escuro e estava tonta. Percorri o corredor até à sala e caí no sofá. Ainda ouvia o zumbido das batidas musicais ressoarem dentro da minha cabeça. Fiquei assim, encostada às almofadas, o tempo suficiente para borrar os tecidos com a minha saliva, que caía da minha boca semi aberta, e alguns laivos de batom, daquele que ainda sobrava, gretado, nos meus lábios ressequidos. Levantei-me de repente, obrigando-me a reagir contra a inércia do meu corpo, e decidi que o que eu precisava era de me libertar de todas as roupas que me sufocavam a pele.

Tirei os ganchos e soltei o cabelo.
Tirei o colar, os anéis e as pulseiras.
Tirei o vestido.

Tirei o soutien, as cuecas.

Fiquei de sapatos, saltos altos e finíssimos, uma verdadeira câmara de tortura ambulante. Mas no alto dos meus stilletos, nua e sem qualquer pudor, caminhei lentamente até à sanita, e assim fiquei, sentada, esvaziada e nua. Como sempre acontece, a minha cabeça arrancou a mil à hora, perdida em pensamentos deslumbrantes que depressa substituía com pensamentos degradantes, que facilmente perdiam o rumo. É uma inspiração confusa, pensar nas coisas da vida dentro de uma casa de banho. Especialmente depois de uma noite a dançar ao som de margueritas e ao sabor de transe psicadélico. No meio das tarefas agendadas para o dia que se aproximava e do enjoo natural que fazia ponderar nunca mais misturar álcool e drogas (pelo menos até à próxima festa), fixei-me nos meus sapatos, nos meus pés curvados para dentro, como uma menina arrependida. Eram lindos, os meus sapatos vermelhos. Eram vermelhos, de bico redondo e saltos de 11 centímetros, muito vintage. Muito porno.



Imagino-me longe daqui, uma vida alheia, onde já não estou sentada numa sanita, mas numa cadeira daquelas de realizador. Na minha fantasia, sou uma estrela de filmes pornográficos, e espero pelo primeiro take da tarde.


O rapaz com quem vou contracenar também está à espera que o efeito das drogas endureça ainda mais o pénis, e eu aguardo, nua e de pele oleada, sentada na minha cadeira.


Apago o cigarro com o salto do meu sapato. Adoro acertar à primeira com o salto no coração do cigarro moribundo, e esmagar-lhe a vida cujo último fumo teima em subir pela minha perna. Como uma carícia quase quente. Dá-me pica para o que se segue.


Antes de fazer filmes “eróticos”, sempre questionei o bom gosto do uso de sapatos de salto alto pelas actrizes.
Quem é que fode calçado? Que especial gosto pode ter a visualização de uma mulher nua de pernas abertas, completamente devassada de sexo, completamente exposta, com excepção aos pés, sempre cobertos de sapatos de salto alto?


Percebo o allure que uma menina pode ter de saltos altos e lingerie, mas porquê esta fascinação por ver mulheres com sapatos em filmes porno? E parece que quanto mais altos os saltos, melhor, quanto mais rasca for o material, melhor, quanto mais plásticos e transparentes, melhor…


Os meus são vermelhos e o que eu sei, é que, neles, fico maior, sinto-me mais corajosa, são uma espécie de extensão de um alter-ego que me permite fazer tudo, arriscar tudo.


Sou uma versão mais poderosa de mim própria, dentro dos meus sapatos de salto alto.


Toca lá fora o apito que chama todos os participantes ao set.


Cravo o salto em mais um cigarro. Levanto-me. Olho-me no espelho do camarim, e vejo-me nua. Sinto-me protegida e mais bela que nunca, do alto dos meus sapatos.


Volta a tocar lá adiante.


Não para de tocar o som irritante despertador.



Eram 7 da manhã quando despertei com o zumbido atordoante, repetido, repetido. Atirei a única coisa que, no sono, encontrei por perto, e ainda dormente, segui a trajectória do voo do meu sapato. O som parou quando o salto embateu no aparelho. Abro mais os olhos. Estava nua, caída na chaise-longue, as minhas pernas abertas, escancaradas contra o espelho. O cabelo desalinhado, os restos de maquilhagem esborratados nos olhos, a boca seca. E o sapato ainda calçado, única testemunha presente, resto da noite que não me abandonava. Levantei-me e olhei, fixa e atentamente para as curvas denunciadoras à minha frente. O espelho do boudoir devolveu-me uma imagem maior, mais longa, mais distante, como se vê nos sonhos. Era como eu, um pouco mais desequilibrada por faltar o outro elemento do par, porém, mais sedutora, mais essencial. Quis recordar-me assim, na corda bamba entre a realidade e a fantasia, numa imagem de plenitude e beleza que brindava à decadência e bebia directamente da boca da luxúria.
Podia ser da ressaca, que não me deixava encarar com verdade a luz da minha pele, mas algo me diz que o segredo morava nos arranha-céus vertiginosos dos meus sapatos vermelhos.

3 comentários:

polegar disse...

numa palavra: maravilhoso.

Anónimo disse...

és sempre tão querida, ainda bem que gostas vai-te preparando que um destes dias dizes um destes textos num palco qualquer
beijos sua maravilhosa
M.

polegar disse...

quando quiseres, estou à disposição... e COM disposição ;)
muahahahah!